#TBChemistry - A utilização de corantes retratada nas Cartas de Pero Vaz de Caminha

A utilização de corantes retratada nas Cartas de Pero Vaz de Caminha

Escrito por: Pedro Lucca Rabello Rodrigues

É de conhecimento de todos que a certidão de batismo da eterna “Terra de Vera Cruz”, nosso querido Brasil, são as cartas (Figura 01) da expedição em busca às índias, lideradas pelo fidalgo Pedro Álvares Cabral, redigidas em ocasião das navegações dos portugueses que tiveram, como relatado por eles, uma “grande descoberta”: as terras do Brasil.

Figura 01: Imagem de parte da Carta de Pero Vaz de Caminha[1]

Fonte: Caminha (1500, p.1).

O documento, intitulado “Carta a el-rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil” foi escrito em Porto Seguro, em 1500, e atualmente encontra-se no Arquivo da Torre do Tombo (Arquivo Nacional de Portugal) e é considerado um Registro da Memória do Mundo pela UNESCO (CARVALHO, 2019). O início da carta trata do achamento da terra nova:

Posto que o Capitão-mor desta vossa frota, e assim os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que ora nesta navegação se achou, não deixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que — para o bem contar e falar — o saiba pior que todos fazer (CAMINHA, 1500, p.1).

Dentre os fatos relatados, temos a desembarcação dos colonizadores e o primeiro contato com os nativos que foi retratado por Oscar Pereira da Silva, em 1900 (Figura 02).

Figura 02: Desembarque de Dom Pedro Álvares Cabral em Porto Seguro em 1500

Fonte: Oscar Pereira da Silva, 1900, óleo sobre tela, 190 x 333 cm. Acervo do Museu Paulista da USP, São Paulo.

A carta se trata de uma narração sobre alguns acontecimentos no achamento do Brasil, em forma de diário, e revelou não somente o descobrimento de novas terras, o “novo mundo”, mas também possuía grande descrição dos aspectos naturais, a chegada dos portugueses, o encontro com os nativos e a primeira missa em solo brasileiro.

E à quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitos à terra, indo os navios pequenos diante, por dezessete, dezesseis, quinze, catorze, treze, doze, dez e nove braças, até meia légua da terra, onde todos lançamos âncoras em frente à boca de um rio. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas pouco mais ou menos. Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro. Então lançamos fora os batéis e esquifes, e vieram logo todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor, onde falaram entre si. E o Capitão-mor mandou em terra no batel a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou de ir para lá, acudiram pela praia homens, quando aos dois, quando aos três, de maneira que, ao chegar o batel à boca do rio, já ali havia dezoito ou vinte homens. Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram (CAMINHA, 1500, p. 2).

No que diz respeito a química, alguns autores mencionam a carta de Caminha como a primeira descrição de conhecimentos práticos, utilizados pelos indígenas, da química brasileira (ALMEIDA; PINTO, 2011). Dentre os relatos de Caminha, temos o detalhamento de uma planta que os indígenas utilizavam para a pintura corporal, o que demonstrou o domínio sobre a extração de corantes naturais como o corante vermelho obtido do Urucum.

E segundo diziam esses que lá tinham ido, brincaram com eles. Neste dia os vimos mais de perto e mais à nossa vontade, por andarmos quase todos misturados: uns andavam quartejados daquelas tinturas, outros de metades, outros de tanta feição como em pano de ras, e todos com os beiços furados, muitos com os ossos neles, e bastantes sem ossos. Alguns traziam uns ouriços verdes, de árvores, que, na cor, queriam parecer de castanheiras, embora mais pequenos. E eram cheios duns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os entre os dedos, faziam tintura muito vermelha, de que eles andavam tintos. E quanto mais se molhavam, tanto mais vermelhos ficavam (CAMINHA, 1500, p. 9).

O corante extraído do urucum denominado bixina é um composto orgânico do grupo dos carotenóides e de fórmula molecular C25H30O4 que, além de dar a cor vermelha na pele dos nativos (Figura 03), servia para a proteção solar e também foi muito usado na produção de sabão e como forma de evitar ataques de inseto em móveis (PINTO, 1995).

Figura 03: Descobrimento do Brasil

Fonte: Cândido Portinari, 1956, óleo sobre tela, 199 x 169 cm, Rio de Janeiro, Coleção Banco Central do Brasil.

O texto da carta também fala do corpo tingido com uma pintura preta,

Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho, e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que, certo, assim pareciam bem. Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre elas andava uma, com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas, e também os colos dos pés (CAMINHA, 1500, p.4).

Apesar da menção não é relatado sobre a sua composição ou derivação da planta que produzia tal corante, no entanto, autores como Alves e Ming (2015) e Bolzani (2016) apontam como sendo feito de Jenipapo, cujo nome tem origem do tupi-guarani, significando “fruto que serve para pintar”. Em termos químicos, o jenipapo, cujo composto genipina é que que origina a coloração preta-azulada, é do grupo dos Iridóides e possui fórmula molecular C11H14O5. A genipina não possui coloração preta, no entanto quanto entra em contato com os aminoácidos da pele reage de forma a produzir tal coloração, como retratado na pintura de Hercules Florence em 1828 (Figura 04).

Figura 04: Maloca dos Apiaká no rio Arinos

Fonte: Hercules Florence, 1828, aquarela, nanquim e grafite sobre papel, arquivo da Acadêmica de Ciências, São Petersburgo.

Além da pintura preta usado nos corpos dos indígenas, e que foi retratado na carta de Caminha, o jenipapo também é muito utilizado no Norte e Nordeste do Brasil para fabricação de licores, refrescos, vinhos, refrigerantes, doces e mousses e sua casca também é fonte de sais minerais, em especial ferro e vitaminas (BOLZANI, 2016).

Já a espécie mais conhecida dos pigmentos nativos é de tamanha relevância histórica que pôde dar o nome à nossa nação, o Pau-Brasil, árvore que também foi mencionada nos escritos de Caminha, como ressalta Catharino (2006) quando diz “a mataria é tanta, tão grande, tão densa e tão variada folhagem que ninguém pode imaginar” (CAMINHA, 1500 apud CATHARINO, 2006, p. 8).

A primeira grande exploração da biodiversidade brasileira foi desta madeira, que possui tronco duro, pesado e de cuja madeira se extrai um corante vibrante (Figura 05) de cor avermelhada, a brasileína, composto do grupo dos catecóis e de fórmula molecular C16H14O5.

Figura 05: Resina da madeira do Pau-Brasil

Fonte: Extraído de https://www.sohistoria.com.br/curiosidades/nomes/.

Seu uso não é restrito da exploração pelos portugueses, pois os nativos utilizavam o cerne da árvore para tingir penas de aves, entre outros, como parte de ritos culturais e religiosos, além de também usarem a madeira da árvore para a fabricação de arcos e flechas (SILVA; VALERI, 2017). Apesar disso, sua grande exploração se deu em função da exportação em massa dessa árvore para a Europa, que também foi usada como corante (Figura 06) para tingir roupas da corte (CATHARINO, 2006).

Figura 06: Tintureiros tingindo tecidos com pigmento extraído do Pau-Brasil


Fonte: Iluminura francesa, séc. XVI. Extraído de https://ensinarhistoria.com.br/exploracao-do-pau-brasil/.

Ainda hoje se faz uso desse material, inclusive na área medicinal onde pesquisas apontam que o extrato possui grandes propriedades antiinflamatórias, antimicrobianas e antitumorais (SILVA; VALERI, 2017).

Pela análise dos trechos da carta podemos concluir sobre a matéria prima com que os índios conseguiam obter seus corantes naturais: Urucum, de cor laranja/vermelha, Pau-Brasil, coloração avermelhada, e Jenipapo, cor preta/azul (BARROSO et al., 2019). Apesar de não serem mencionadas, propriamente, a composição química desses corantes, já que até a catalogação de algumas dessas plantas só ocorreu anos mais tarde e a compreensão das estruturas químicas depois de séculos, é importante ressaltar as técnicas desenvolvidas de extração dos pigmentos pelos indígenas, mesmo sem o domínio de conhecimentos químicos específicos, o que torna mais relevante, para nós químicos, o estudo de fatos históricos como a Carta de Caminha.

Referências bibliográficas:

ALMEIDA, M. R; PINTO, A . C. Uma breve história da química brasileira. Cienc. Cult. v. 63 n.1. São Paulo, 2011. Disponível em: http://dx.doi.org/10.21800/S0009-67252011000100015. Acesso em 20. jul. 2021.

ALVES, L. F.; MING, L. C. Chemistry and pharmacology of some plants mentioned in the letter of Pero Vaz de Caminha. Ethnobiology and Conservation, v.4, n.3, 2015.

BARROSO, M. C. S; STEDILE, A. M. A; ARIZA, L. G. A; SAMPAIO, C. G; VASCONCELOS, A. K. P; SILVA, C. R. F. A ciência do descobrimento do Brasil, percepções químicas a partir de pigmentos. 59º Congresso Brasileiro de Química. João Pessoa, 2019. Disponível em: http://www.abq.org.br/cbq/2019/trabalhos/6/1598-26623.html. Acesso em 20. jul. 2021.

BOLZANI, V. A beleza invisível da biodiversidade: genipipa, o princípio ativo do preto das pinturas no corpo de índios brasileiros. Ciência na Rua, 2016. Disponível em: https://ciencianarua.net/a-beleza-invisivel-da-biodiversidade-genipina-o-principio-ativo-do-preto-das-pinturas-no-corpo-de-indios-brasileiros/. Acesso em: 20. jul. 2021.

CAMINHA, P. V. [Carta enviada à Sua Alteza Dom Manuel]. Destinatário: Dom Manuel I, rei de Portugal. Brasil, 1500. Disponível em:  http://objdigital.bn.br/Acervo_Digital/livros_eletronicos/carta.pdf . Acesso em: 20. jul. 2021.

CARVALHO, B. L. P.  Confira a carta de Pero Vaz de Caminha digitalizada (notícia). In: Café História – História feita com cliques. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/carta-de-pero-vaz-de-caminha. Publicado em: 22 abr. 2019. Acesso em: 20. jul. 2021.

CATHARINO, E. L. M. As florestas montanhas da Reserva Florestal do Morro Grande, Cotia (São Paulo, Brasil). 2006. 247f. Tese - Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas,Campinas, 2006.

PINTO, A. C. O Brasil dos Viajantes e dos exploradores e a química de produtos naturais brasileira. Química Nova, n.18, v.6, 1995. Disponível em: http://static.sites.sbq.org.br/quimicanova.sbq.org.br/pdf/Vol18No6_608_v18_n6_16.pdf. Acesso em: 20. jul. 2021.

SILVA, E; VALERI, D. V. Importância histórica e econômica do Pau-Brasil. PROJETO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA: Pau-Brasil em São Paulo: em exemplo de cidadania e amor à vida. UNESP, 2017. Disponível em: https://www.fcav.unesp.br/Home/extensao/paubrasil/modulo-4-importancia-historica-pau-brasil-24_03_17.pdf. Acesso em: 20. jul. 2021.


Comentários

Postagens mais visitadas